Escravos


Personagens reais e fictícios dialogam sobre uma das piores criações da humanidade: a escravidão.


Segundo o grande historiador egípcio Zahir Batin Farouk , maior pesquisador da atualidade sobre os regimes de servidão ao longo da história, o nascimento da escravidão se deveu a um ato de humanidade. Nisso ele se apoia nas teorias éticas do sábio Ptahhotep que, ao se aproximar dos cem anos de idade, resolveu legar à posteridade suas Máximas.

A Ideia por trás desse ato de humanismo antecipou em milênios a filosofia utilitarista concebida por sábios mais modestos e mais modernos. É uma Ideia não só utilitária, mas simples: os vencidos nas guerras tinham sempre o mesmo destino — a morte. Então, um grande humanista conjecturou ser mais proveitoso a ambos os lados — vencedores e vencidos — não desperdiçar tamanha mão de obra com o anátema, mas aproveitá-la para algo útil. Útil, é claro, aos vencedores. Desconheço se essa teoria explorou a possibilidade de opção aos vencidos: eram obrigados a viver, ou poderiam preferir o anátema?

Se essa tese era verdadeira, não me cabe decidir. Pretendo apenas registrar a metamorfose de algumas ideias, fazendo jus aos ensinamentos de Ortega y Gasset 1, que, ao falar desse humanitarismo inicial da escravidão, advertiu que todas as coisas humanas devem ser vistas sob essa perspectiva dupla: o aspecto que têm ao chegar e o aspecto que têm ao partir. 

Esse humanismo terminou praticado em larga escala na Mesopotâmia, Egito, Grécia primitiva e no início da Roma antiga.

Mas não há ideia humana que não possa ser piorada.

De ato humanitário, passou a ato mercantilista, ante o grande lucro envolvido. Os sábios administradores da Grécia Clássica foram os primeiros a fazer o cálculo, e os práticos romanos — que nada mais fizeram senão expandir ao infinito todos os cálculos gregos — transformaram-no em empresa na Roma Expansionista.

As guerras passaram então a ter como propósito não só a vitória, mas a captura de escravos: a consequência converteu-se em objetivo. A Ideia não apenas piorou, transmutou-se.

O que até então existia na casa dos milhares, Roma elevou à casa dos milhões. Mas teve seu preço. Alguns economistas do período áureo dos Cinco Bons Imperadores, em especial o mais proeminente de todos, Publius Claudius Aequitius, alertavam insistentemente que o Império não sobreviveria se não eliminasse a escravidão — que, segundo cálculos da época, já atingira um terço da população.

Esses economistas defendiam a ideia de que a escravidão só beneficiava os grandes proprietários de terras e não permitia que a ordo equester, os decuriões, os assidui, os opifices e mercatores — algo como uma classe média moderna — crescessem em número, prosperassem e se tornassem o motor da economia. Pior: criava uma concorrência desleal com os pequenos produtores rurais, que não tinham como competir com latifundiários senhores de escravos.

Não foram ouvidos, e o ano de 476 d.C. cobrou o seu preço 2.

Até então os escravos podiam ascender socialmente, comprar a liberdade ou integrar-se à sociedade, como o próprio proeminente economista romano, que chegou a adotar o nome da família régia em cuja casa servira por sete anos como escravo doméstico.

Mas a Ideia só foi piorando.

Na Rússia czarista, o termo mudou de nome: servidão camponesa. Se Roma elevou a escala escravagista à casa dos milhões, a Rússia fez a proeza de elevá-la acima dos dez milhões — pela primeira e única vez na história da humanidade.

Nesta mesma Rússia czarista, o maior cativeiro humano da história, os servos eram brancos, eslavos, caucasianos — explorados não por cor de pele, mas por sua posição social hereditária. Talvez por isso tenha-se usado o eufemismo “servidão” em vez de “escravidão”, para dar-lhe ares mais aceitáveis.

Chamem de servidão se preferirem; o rótulo consola a gramática, não o servo.

Quando, em 1861, o czar Alexandre II resolveu pôr fim a esse eufemismo — que então se chamava krepostnichestvo — sua assinatura libertou cerca de metade da população: algo em torno de vinte e três milhões de pessoas!

Nesse ponto, a escravidão já estava tão distante daquela pretensa Ideia humanitária inicial, que agora servia para ilustrar a intuição de Platão: tudo o que existe no Mundo Sensível é sempre degenerado em relação ao Mundo Inteligível, isto é, ao modelo original.

E não se deve nunca duvidar da capacidade dos seres humanos em piorar algo que já é ruim.

Ao lado da servidão russa, surgiu a transatlântica: a escravidão racializada — a pior de todas. Agora o escravo era marcado pela cor e pela hereditariedade: o filho nascia escravo, o cativeiro era eterno. Foi a forma mais brutal e desumanizadora da instituição, porque transformou diferenças étnicas em justificativa ideológica permanente para a exploração, sem possibilidade de libertação ou incorporação às sociedades que a praticavam: as Américas, sobretudo EUA e Brasil.

A Ideia então chegou ao clímax e, finalmente, começou a perder força: possibilidade de alforria, proibição do tráfico transatlântico de escravos, até sua extinção definitiva. O Brasil foi o último a abolir essa triste invenção humana — que desinventava o humano.

Não é preciso recorrer a leis históricas para classificar essa Ideia como uma das piores já inventadas. Uma simples equação matemática basta — ao menos a matemática é ciência exata e não comporta polarização:

Escravidão = mímesis pervertida. 3

Mas parece que só cem anos depois da Lei Áurea os brasileiros lembraram que deveriam buscar alguns outros atributos dessa Ideia, perdidos ao longo do tempo: integrar os libertos à sociedade e conferir-lhes direitos, como mais ou menos faziam os gregos e romanos antigos.

Ao mesmo tempo em que se buscou ressuscitar atributos perdidos da Ideia original, outras partes dela ressurgiram espontaneamente — como se os pensamentos humanos pudessem não só ser reduzidos à matemática, mas também à química. Como se a Ideia fosse uma espécie de sólido que se evaporou e segue circulando por aí, assombrando a humanidade. Como se obedecesse à entropia das ideias: da forma estável ao vapor que tudo permeia.

No passado egípcio, quando ainda estava na fase humanitária — isto é, antes de virar negócio — a escravidão vinha acompanhada de atributos religiosos e de proteção. Povos eram submetidos — alguns até se entregavam espontaneamente, ante as precárias condições de vida de então — ao servilismo ao faraó, em troca de comida, terra e proteção. O Maat 4 legitimava a corveia5 e a escravidão propriamente dita.

A mesma Ideia ressurgiu como pizzo6 na Itália e foi levada pela máfia italiana aos EUA, mudando de nome para shakedown ou protection money. Ressurgiu também no Brasil, mas sem nome específico — praticada em larga escala pelas milícias, em especial no Rio de Janeiro, onde moradores pagam taxas por segurança, gás, transporte, TV a cabo etc., sem alternativa real.

A justificativa moderna também é bem humanitária: proteger as pessoas dos perigosos criminosos que as cercam.

A mais estranha transformação da Ideia, no entanto, tem ocorrido silenciosamente: a servidão voluntária. Se os romanos levaram a escravidão à casa dos milhões e os russos às dezenas de milhões, essa agora já passou à escala dos bilhões. Cada vez mais pessoas se entregam a ela deliberadamente.

Exemplos não faltam e enumerá-los todos fugiria ao escopo deste breve relato. Recentemente divulgou-se que várias pessoas, voluntariamente, estão indo até uma pequena comuna italiana à procura de uma idosa que se veste como nos tempos antigos. Batem de porta em porta e, quando a encontram, fazem uma selfie. Não se sabe que tempo antigo a roupa da foto representa. Outros detalhes também não importam. A ideia é capturar o instante. Servidão pura! Claramente abre-se mão da liberdade em prol do espetáculo.

Outros passam horas e horas, voluntariamente, trabalhando em algo que não gostam para comprar aquilo de que seus filhos não precisam. Dizem que os filhos são aquilo que mais importa em suas vidas. Se, mesmo assim, abrem mão de todo o tempo que poderiam estar com eles em prol desse projeto, só pode ser sinônimo de servidão total.

Há um caso curioso que virou história hollywoodiana: um homem tornou-se servo de flores; quando ficou velho, virou servo do tráfico de drogas, o que o levou ao cárcere pelo resto da vida. Uma vida dedicada aos grilhões, magistralmente contada pelas mãos talentosas de Clint Eastwood7.

Antes havia chicote e pelourinho; agora o açoite é mais sutil: metas e pílulas. Dizem que estas decorrem daquelas; sem elas, nem à noite, na cama, se desfazem os grilhões.

Como essa Ideia continuará assombrando a humanidade, não se pode calcular. Para isso seria necessário recorrer a alguma fórmula, mas, nessa seara, elas não existem ou ainda não foram inventadas — existe apenas o teimoso recado do passado.

Aliás, quando o sábio heresiarca de Uqbar8 disse que os espelhos e a cópula são abomináveis, penso que não queria, em si, condenar a cópula ou a multiplicação dos seres humanos, mas apenas advertir que tal multiplicação é funesta se significar a perpetuação infinita de uma estrutura insustentável e a repetição de invenções absurdas — como a escravidão.

Porto Velho, julho de 2025.

M. – Liber Sum


Notas

  1. A Rebelião das Massas – José Ortega y Gasset – Vide Editorial – 5ª Edição – 2016, página 287. ↩︎
  2. Data da queda do Império Romano do Ocidente. ↩︎
  3. Mímesis é “imitação/representação”. Em Platão, a mímesis tem estatuto inferior: é cópia do sensível (que já é cópia das Ideias) e, se não for usada com propósito educativo, afasta da verdade (cf. República III e X). Em Aristóteles, a mímesis é via natural de aprendizagem: ao representar ações humanas, a tragédia produz reconhecimento e pode gerar catarse (Poética). No conto, “mímesis pervertida” nomeia a imitação que trai o modelo — quando uma prática que deveria aproximar do humano (reconhecê-lo) o degrada e domina. ↩︎
  4. Na religião egípcia antiga, Maat ou Ma’at tinha duplo significado: a) deidade: deusa da verdade, da justiça, da retidão e da ordem; b) princípio: Maat  também é um termo associado à determinação final e funciona como conceito; os princípios de Maat eram parte integrante da sociedade, e garantia de ordem pública. ↩︎
  5. No Egito Antigo, a corveia era um trabalho compulsório e não remunerado imposto pelo Estado para a construção de obras públicas, como pirâmides, templos e fortificações. Era uma obrigação de trabalho que a população livre (não escrava) devia ao faraó. ↩︎
  6. Pizzo é um termo italiano que se refere a um sistema de extorsão praticado por organizações mafiosas, para cobrar uma taxa de proteção de empresas e comerciantes. A recusa em pagar pode resultar em violência e assassinato. ↩︎
  7. Filme The Mule (2018), direção de Clint Eastwood. ↩︎
  8. Conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, página 81: “Descobrimos (noite alta essa descoberta se torna inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Bioy Casares lembrou então que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.” Nova Antologia Pessoal, Jorge Luis Borges, Kindle. ↩︎

Dicas:

  • Alguns personagens são reais, outros inventados — e, entre os reais, alguns aparecem ficcionalizados.
  • Cabe ao leitor descobrir quais personagens nasceram da história e quais nasceram da imaginação.

A respeito da escravidão leia também: https://quatrocincoum.com.br/resenhas/historia/a-escravidao-em-primeira-pessoa/

Leia também o conto do autor: Correntes Cósmicas

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