Quinto Flaco, o Selecionador (1)
Chamavam-no, entre os poucos conhecidos, de O Selecionador. Não era apelido irônico, mas descrição precisa. Quando não estava trabalhando ou dormindo, passava as noites e os dias navegando nas plataformas de streamings, criando listas: filmes que veria no inverno, filmes para quando chovesse, para quando estivesse só, para quando estivesse com alguém. Classificava-os por diretores, países, atores principais, roteiristas, fotografia, personagens secundários. Nenhum detalhe lhe escapava, exceto o essencial: assistir. Faltava-lhe tempo.
Um dia recebeu uma notificação de um dos serviços de assinatura — não saberia dizer qual, pois assinava todos, inclusive alguns piratas. A mensagem era fatal:
ASSUNTO: Encerramento de Acessos
Protocolo: 70-QF-0144
Foi instaurado processo interno contra você e deliberou-se pelo cancelamento peremptório de todas as suas assinaturas. Por consideração ao seu histórico e ao seu estado atual, concedem-se sete meses de acesso. Nem um dia a mais.
Não havendo a quem apelar, decidiu: durante esses sete meses terminais assistiria aos melhores filmes, aos que encabeçavam suas infindáveis listas. Criou uma nova pasta, a derradeira, intitulada Aos olhos da eternidade. Mas a seleção não cessava. Dentro da pasta criava subpastas; dentro destas, outras ainda, num processo interminável de refino: Top 12 do inverno, 7 essenciais da chuva, 3 para nunca ver acompanhado.
Às vezes pousava o cursor sobre o play. Pensava: versão restaurada ou corte do diretor? 1.44:1 ou 2.20:1? legendagem oficial ou de festival? Ajustava brilho e contraste “nem de menos, nem de mais”, como se uma régua invisível pudesse salvá-lo. (2)
Quando o sono chegava, já não lhe restava tempo para assistir — havia sempre um filme mais digno, uma última reorganização, uma dúvida a esclarecer.
O papel de parede da sala mostrava um monte branco de neve; do vidro do monitor, uma poeira fina devolvia a sombra do seu rosto. Às noites, um zumbido constante parecia encher o cômodo, como o ventilador de um projetor antigo — ou seria o próprio pulso? (3)
Faltando doze dias, alinhou tudo uma última vez. Na prateleira, um vinho de quatro anos descansava “para a ocasião certa”. Ele o cheirou; não abriu. Ainda não chegara o momento. (4)
Os sete meses passaram como todos os anteriores: em escolhas infinitas.
Na última manhã, Quinto Flaco abriu a pasta definitiva. Não havia nada. Apenas uma tela em branco, refletindo sua face cansada. Durante um instante, acreditou ouvir o início de uma projeção — parecia uma batida intermitente, ritmada — abruptamente o rumor aumentou, mas a seguir começou a ficar mais e mais inaudível, até dissolver-se no silêncio.
Porto Velho, setembro de 2025.
M. T. – Liber Sum
- Quinto Horácio Flaco (65 a.C. – 8 a.C.) foi um dos maiores poetas da Roma antiga e um dos expoentes da chamada Idade de Ouro da Literatura Latina, ao lado de Virgílio e Ovídio. Conhecido por Horácio. Famoso, sobretudo, pelo poema Carpe diem: Carpe diem, quam minimum credula postero. (Odes I, 11). “Colhe o dia, confiando o mínimo possível no amanhã.” O nome do personagem do conto é uma paródia onomástica do grande poeta, invertendo o Carpe Diem.
- Aurea mediocritas (a vida equilibrada). Auream quisquis mediocritatem diligit, tutus caret obsoleti sordibus tecti, caret invidenda sobrius aula. (Odes, II, 10) “Quem ama a dourada mediocridade vive seguro: livre da pobreza de uma choupana em ruínas, livre da inveja de um palácio suntuoso.”
- A brevidade da vida. Pulvis et umbra sumus. (Odes IV, 7). “Somos pó e sombra.”
- Ao Soracte (Odes I, 9) — Vinho, inverno e juventude:
“Vês como Soracte, o monte, se ergue branco de neve,
como as florestas já não suportam o peso,
e os rios pararam de correr sob o gelo?
Dissolve o frio com a lenha que queima generosa no lar,
e traz do jarro o vinho de quatro anos.”
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