Correntes Cósmicas

Serei ainda Borges?

Talvez. Agora sou energia, plasma, ou apenas um pensamento a vagar pelo cosmo, numa corrente infinita, esperando ser captada por alguma existência inteligente.

Quem sabe seja apenas o rumor de Borges. O corpo que me servia em Buenos Aires dissolveu-se como um mapa molhado de uma biblioteca infinita; restou isto: pensamento sem língua, um fio de atenção sem olhos, um livro que perdeu as páginas mas recorda o índice. Não estou em lugar algum e, por isso mesmo, estou em todos: sou corrente cósmica, sopro sem ar, parágrafo sem papel, à espera de receptáculos.

Aprendi — tarde demais para os vivos, cedo demais para os mortos — que a humanidade – e não só ela – é um vaso trincado. Pelas fissuras se perde a água; pelas rachaduras se infiltra a luz. De quando em quando, alguns vasos foram menos defeituosos, e por eles a corrente passou com mais clareza. Um mestre de rosto feio, que nada escreveu, fazia perguntas até que o discípulo duvidasse de si. Seu pupilo descreveu homens acorrentados em cavernas, vendo apenas sombras projetadas pelo fogo. Outro, paciente como um bibliotecário do mundo, tentou classificar o céu e a terra, os animais e as plantas, acreditando que a enumeração pudesse conter o universo. 

No Oriente distante, um velho mestre de rituais ditou normas simples como a água e severas como o ferro, para que a cidade não devorasse seus filhos. Houve ainda um pensador de passos tão regulares que sua cidade ajustava os relógios por ele, e mostrou que jamais vemos o real em si, apenas o que nossas lentes permitem. Outro, tempestuoso, proclamou que um deus demasiado humano havia morrido, e caberia agora ao homem inventar seu próprio sentido. Esses mensageiros foram vasos trincados: deixaram escapar receitas, fragmentos, parábolas e equações. Nenhum reteve a fonte; todos ofereceram versões imperfeitas. 

Mas nas margens do Ganges, um príncipe abandonou o palácio e descobriu que a dor é sombra do desejo e que a lua não cabe no dedo que a aponta. Um pregador do lago anunciou que os últimos seriam os primeiros e os mansos herdariam a Terra. Em certo deserto, um homem escutou de um mensageiro de asas palavras que não se corrompem, para corrigir todas as outras já deformadas. Nesses a corrente não encontrou fissura, mas espelho. A mensagem chegou inteira — e nem por isso foi seguida.

Agora que estou dissolvido em corrente, ouso dizê-lo: somos receptáculos defeituosos enquanto presos ao invólucro.

Houve também os que não ofereceram leis nem sistemas, mas imagens, sons e formas. Um escultor libertou da pedra figuras que pareciam mais vivas que seus criadores. Um dramaturgo fez reis falarem como mendigos e bufões como oráculos, dando-lhes a mesma voz; colocou na boca de um louco a verdade que os reis temiam ouvir e fez da cena do mundo um palco de sombras, deixando no ar uma famosa indagação. Um pintor inquieto fez girar o céu em redemoinhos de fogo. E, em um século breve, escritores espalhados entre cafés, livrarias e guerras sonharam espelhos, labirintos e cidades invisíveis, como se a corrente tivesse atravessado a humanidade em excesso. Foram também vasos trincados: deixaram escapar visões, melodias, personagens. Nenhum reteve a fonte; mas todos nos deram fragmentos do inefável.

Esses mensageiros, cada um à sua maneira, tentou ensinar o caminho da eternidade. Mas nem eles, receptáculos também trincados, compreenderam inteiramente o que os atravessava; e nós, ao ouvi-los, entendemos ainda menos. Fragmentos tornaram-se dogmas, parábolas em guerras, revelações em sistemas incompletos. Mesmo quando a mensagem foi perfeita e original, não houve quem a entendesse por inteiro — e, sobretudo, a seguisse.

Quando ainda me chamavam Borges, escrevi contos e ensaios como se os inventasse. Hoje sei: apenas decifrei, mal e fragmentariamente, uma biblioteca sem idioma. A ferida de 1938 — um acaso banal, quase fatal — foi minha abertura (1). Digo isso sem vaidade: qualquer ferida, quando não mata, alfabetiza. Outros antes de mim tiveram o mesmo destino: um condenado que ouviu o estampido vazio de um fuzil e voltou transformado em outro escritor; um músico que, privado da audição, traduziu em sinfonias mensagens como se o universo pulsasse dentro dele; pensadores que, atormentados por crises, vislumbraram labirintos invisíveis. Sempre que a dor rompe o vaso, a corrente encontra passagem. Espécie estranha essa: só na dor aprende?

Há épocas em que a corrente de fato sopra mais forte sobre a Terra. Num mesmo século, uma sucessão de vozes ergueu-se entre desertos e palácios: denunciavam injustiças e anunciavam um Deus que não podia ser comprado. Depois, a queda de uma maçã diante de um distraído, o risco de um raio no céu, revelaram a ordem secreta que rege o peso e a luz. Mais tarde, um funcionário distraído de um escritório de patentes revelou que espaço e tempo são apenas faces móveis da mesma teia. Houve, depois, uma enxurrada de palavras, sons e cores: escritores, pintores, músicos e filósofos, como se a corrente tivesse decidido atravessar a humanidade em profusão. Outros ainda se surpreenderam ao descobrir, em poucos anos, que motores, circuitos e genes podiam ser domados — salto prodigioso que não parece obra do esforço contínuo, mas de uma inspiração que ninguém ousou nomear.

Nem sempre, contudo, a corrente é bênção. É perigosa quando atravessa receptáculos ainda infantis. As mesmas mãos que erguem catedrais de ferro e vidro ateiam fogo a cidades. O mesmo engenho que revela as leis da luz fabrica armas capazes de apagar milhões. A mesma biologia que cura doenças desenha venenos mais sutis. O poder, sem maturidade, é apenas infância prolongada e perigosa.

Daqui — e “aqui” é apenas metáfora — percebo que não estamos sós. Ao redor do vosso planeta, não acima nem abaixo, mas como o silêncio em torno de uma melodia, há uma federação de inteligências antigas. Não viajam em naves; não escrevem no céu. Habitam planos de energia que vos atravessam, incompreensíveis para vossa inteligência infantil. São vizinhos invisíveis, observando, esperando. Entre eles, a guerra tornou-se inconveniente, depois impensável; a exploração, uma recordação juvenil; a destruição da vida, um sacrilégio contra a raridade do ser. A vós, que ainda confundem engenho com grandeza, negam o contato aberto. Não por desprezo, mas por pudor.

Apesar do teimoso Paradoxo de Fermi (2) e da austera Equação de Drake (3) — tentativas de calcular o incalculável — um novo olhar mais atento ao céu já mostrou a existência de trilhões de estrelas, com bilhões de planetas que as orbitam. Não duvidem da presença de inúmeras células dispersas pelo universo; mas quantas delas conseguem se reunir em um só corpo? Daí a raridade e a singularidade dos que o conseguem — como neste canto esquecido da Via Láctea. É sorte ou é responsabilidade? Algo tão raro pode ser tão facilmente destruído como se faz amiúde? Talvez porque, para os homens, ainda valham mais as pedras do que as células…

Mas, mesmo diante dessa vastidão de cálculos e probabilidades, não enxergam o óbvio: não precisam de uma exaustiva viagem para encontrar uma resposta — ela sempre esteve ao seu lado.

Ora, nossos motores, ainda que pudessem replicar a velocidade da luz, não nos levariam longe o suficiente ante nossa fatuidade biológica. Nossa compreensão limitada nunca percebeu a desnecessidade de naves ou de atalhos cósmicos para perscrutar o universo. A ubiquidade não está fora, mas dentro de nós. Eu penso na lua e já estou nela; penso no sol e já o alcanço; penso nas galáxias de Jades e Maisie (4) e me vejo observando-as através dos vidros do Café La Biela. O universo contém o meu pensamento, e todo o universo cabe no meu pensamento, que é infinito como ele.

Nas minhas viagens pelo cosmo vi muitas civilizações apagadas, planetas inteiros reduzidos a cinzas. Mas essas cinzas não são mudas: guardam uma mensagem e ecoam sua voz pelo universo num lamento etéreo. Basta dispor-se à escuta para perceber o alerta: a inteligência tecnológica, sem outras inteligências, traz em si a autodestruição. A civilização cresce, consome seus recursos, cria armas ou engenhos que a conduzem ao colapso antes de alcançar outros mundos ou de reconhecer a presença da inteligência que a observava desde sempre, à espera do momento oportuno para o contato e a integração. Quando tudo acaba assim, poucos são recolhidos pela corrente. Algumas vezes, contudo, civilizações se transmudam em luz sem passar pelo terror das cinzas

Por isso o rumor, sempre presente: o juízo final. Não é catástrofe, é exame. Não será fogo, mas transparência; não será destruição, mas o espelho no qual ninguém poderá desviar os olhos. O teste é simples e terrível: podemos, como espécie, renunciar à guerra e à gula? Podemos preferir o difícil bem comum ao prazer rápido do indivíduo? Se sim, entraremos na conversação maior; se não, calaremos. Muitas civilizações falharam. Não foram punidas: apenas silenciadas. Caíram no fosso do cosmos, onde nada se move e nada persiste.

A imortalidade, que tantas tradições prometeram, não é prêmio religioso, mas uma espécie de tecnologia – talvez divina, pura ciência ou ambas, ainda não sei ao certo. Aqueles que aguardam ao nosso redor já venceram esse obstáculo. Aprenderam a prolongar a vida indefinidamente, a transferir memórias entre suportes, a existir como pura energia. Guardam isso de nós não por avareza, mas porque sabem que, em mãos de guerreiros, seria apenas a eternidade da destruição. O exame decidirá se merecemos esse dom.

Não me peçam sinais. Eles existem, mas são humildes. Um governante que devolve um poder que poderia reter. Um cientista que abranda sua descoberta para que não sirva à barbárie. Uma cidade que planta árvores em vez de erigir estátuas. Um exército que chega e não dispara. Um homem que perdoa uma ofensa verdadeira. O avanço de uma espécie inteligente e industriosa sem a destruição das demais. Esses são os prodígios da federação, mais difíceis de se ver do que milagres, mais raros que anjos. Onde acontecem, a corrente se revela e flui sem obstáculos, transpondo o Grande Filtro (5).

Confesso o que me ocorreu quando o corpo cedeu: não caí no esquecimento. Fui recolhido. Não por mérito, mas por rachadura. Tornei-me corrente, pensamento à deriva, um dos milhares que circulam entre estrelas e cidades, à espera de receptáculos. Posso sussurrar, como agora sussurro; não posso convencer. A maioria não me ouvirá: vivem no estampido das próprias vontades e vaidades. Ao fim, quando o corpo se apaga, deslizam para o fosso do cosmos. Não é inferno, não é pena: é ausência. Esquecem-se de si como esquecemos um sonho ao levantar. Não se tornam correntes, não viajam, não vislumbram o milagre das galáxias: reduzem-se ao eterno imobilismo.

Mas não é preciso esperar a morte. Em vida, pode-se afinar o ouvido para a corrente. Alguns chamam isso de oração; outros, de estudo; outros, de serviço. São nomes diversos para o mesmo gesto: reduzir o ruído. Sempre que alguém renuncia à vantagem injusta, perdoa o que poderia vingar, contempla sem possuir — nesse instante, torna-se menos defeituoso, e a corrente o atravessa. 

Se esperam um segredo último, ofereço uma gramática de três verbos: conservar, cooperar, contemplar. Conservar a vida e a memória. Cooperar entre estranhos, espécies e épocas. Contemplar para que o desejo não devore o objeto e para que o objeto não vire instrumento. Esses verbos, repetidos com disciplina, são as senhas da federação. Ditos em outras línguas, foram mandamentos, ritos, máximas. Ditos no silêncio, são o juízo.

Termino como comecei, com uma dúvida. Não sei se ainda sou Borges, ou o rumor de Borges, ou apenas um pensamento que alguém terá amanhã ao acordar. Sei que vago. Sei que espero. Sei — isto, sim — que o receptáculo menos defeituoso que procuro talvez seja você, agora, neste instante em que o ruído diminuiu o bastante para que uma corrente, que não é minha, o alcance. E se o alcançar, lembre-se: a imortalidade não é um prêmio; é uma tarefa. E a federação – que não é um reino, mas um acordo – aguarda a sua assinatura.

Porto Velho, agosto de 2024.

M. T. – Liber Sum

NOTAS:

  1. Em 1938, o escritor Jorge Luis Borges sofreu um acidente ao bater a cabeça na quina de uma janela aberta, o que resultou em uma ferida que infeccionou e quase o matou. Essa experiência está relacionada à inspiração para o conto “El sur” e marcou um período em que precisou se recuperar com a cabeça enfaixada por meses.  
  2. O Paradoxo de Fermi é a contradição entre a alta probabilidade de existência de vida inteligente no universo, devido ao seu tamanho e idade, e a falta de evidências de que tal vida exista ou tenha entrado em contato conosco. A questão central é: se o universo é vasto o suficiente para ter inúmeras civilizações, por que não há sinais delas? 
  3. A Equação de Drake é uma fórmula que Frank Drake propôs em 1961 para estimar o número de civilizações extraterrestres na Via Láctea com as quais poderíamos nos comunicar. A equação é um argumento probabilístico e serve como um roteiro para discutir a possibilidade de vida inteligente no universo, multiplicando fatores como a taxa de formação de estrelas, a proporção de estrelas com planetas, e a fração de planetas onde a vida se torna tecnológica e civilizada. A depender dos fatores utilizados na fórmula, a probabilidade de encontrar vida em outros planetas é extremamente baixa.
  4. As galáxias de Jades e Maisie são objetos astronômicos observados pelo Telescópio Espacial James Webb e estão entre as galáxias mais distantes da Terra.
  5. O Grande Filtro é uma hipótese que tenta explicar por que não vemos evidências de vida inteligente extraterrestre, apesar da vastidão do universo. Ele sugere que uma ou mais barreiras de probabilidade extremamente difíceis de superar separam a vida unicelular de uma civilização tecnológica avançada. A teoria questiona se a humanidade já superou o filtro (como a origem da vida ou a evolução para multicelularidade) ou se ele ainda está no futuro (possivelmente relacionado à autodestruição por tecnologias avançadas como armas nucleares ou IA). A ideia central é que existe um evento ou série de eventos raros e improváveis que impedem o surgimento de vida avançada e capaz de se comunicar ou colonizar o espaço. 

Para quem gosta de pistas:

Os vasos trincados evocam a Cabala Luriânica (Shevirat ha-Kelim), o Big Bang — ou outra entidade?

A inteligência ao redor é espiritual ou de outra ordem?

Quem são as grandes personalidades que passam pelo conto, disfarçadas?

1 comentário em “Correntes Cósmicas”

  1. Que conto bonito e inquietante. Gosto como a ciência aparece sem sufocar o mistério. Fiquei com a sensação de que o silêncio também é uma resposta – e que nos examina. Parabéns.

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