Evangelho da fumaça.


Evangelho da Fumaça, rituais vazios e o “chá revelação”: quando o rito não passa de fumaça.


Quando as casas de oração cerraram suas portas, quando os parlamentos se tornaram mera polarização irreconciliável, a cultura virou palco do espetáculo, as bibliotecas esvaziaram e as famílias não passavam de ajuntamentos passageiros, ergueu-se entre os homens uma nova liturgia: o Culto da Fumaça.

É o evangelho da fumaça: aparência no lugar de forma, instante no lugar de passagem.

Ninguém sabia explicar sua origem. Nostalgia confusa por antigos degraus? Tédio da abundância? O certo é que, em todas as cidades, balões negros foram inflados como sacrários sem deuses. E a multidão acorria, ansiosa.

O instante da explosão era aguardado como outrora se esperavam nascimentos, juramentos ou funerais. Mas, quando o balão rompia, nada se revelava além da fumaça — azul ou rosa, conforme o capricho. A Massa urrava como se tivesse recebido uma epifania. Recebia apenas o reflexo de sua própria vacuidade.

Era a turba erigida em sacerdócio: a maioria ajoelhada diante de si mesma.

Nesse evangelho da fumaça, a maioria é altar e fiel, sacerdote e plateia.

E, como todo rito exige sacrifícios, vieram os excessos. Os balões cresceram até se tornarem montanhas. Toneladas de pó químico tingiam o céu. Bosques ardiam na cor correta. Cachoeiras eram coloridas como se fossem telas. Cada gesto, mais violento que o anterior, como se a própria terra tivesse de ser ferida para que o vazio fosse celebrado.

As crianças aprenderam que o maior dia de suas vidas não era quando se concluía algo, ou quando se fazia algum juramento e nem o último adeus: era a explosão de um balão que nada dizia. Quando perguntavam: e se depois a cor tiver que mudar? Recebiam como resposta solene que aí já seria outro instante, sem balão para estourar.

Assim, o novo credo espalhou-se. As antigas instâncias sobreviveram apenas como superstição de antepassados. Eram coisas externas demais e agora valia apenas o eu, restava somente o Instante. A fumaça, efêmera, dissolvia-se no vento e deixava para trás um silêncio pesado, logo preenchido por mais gritos e mais fumaça.

Os poucos que ousavam advertir — “Isto é paródia de rito. Não há passagem. Só há a massa celebrando a si mesma” — foram ridicularizados, cancelados, convertidos em caricatura, até serem esquecidos. A turba, enfim, confundiu a fumaça com o firmamento.

Até que veio o maior ritual. Um balão colossal foi inflado no centro do continente. Quando explodiu, o clarão iluminou os dois oceanos. Uma sombra densa cobriu o sol por dias. A multidão aplaudiu, convencida de ter tocado o divino.

Quando o manto escuro se instalou de vez, perceberam — tarde demais — que haviam celebrado um funeral sem corpo: o da própria civilização.

E sobre as ruínas ecoou apenas o sussurro de uma velha esquecida:
— Os ritos nos mudavam, marcavam passagem. Agora, só restou a fumaça.

O evangelho da fumaça prometia epifania; entregou fuligem.

Porto Velho, agosto de 2025.

M. – Liber Sum

Leia também o conto do autor: The City of the Holly Grove e a decadência estética

Sobre a importância de rituais autênticos, que se repetem e tem significância, e não meros Evangelhos da Fumaça, leia: https://www.publico.pt/2023/04/06/impar/opiniao/importancia-rituais-2044399

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