Um homem cria uma cópia aprimorada sua nas redes sociais, desenvolvendo dupla personalidade. Ambas entram em choque. Qual prevalecerá?
Era carinhosamente conhecido por Id. Sempre foi metódico. Tão metódico que, durante anos, anotou cada palavra que ouviu sobre si mesmo. Os terapeutas, com seus diagnósticos técnicos; os familiares, com conselhos de ocasião; os poucos amigos, com frases bem-intencionadas que mais pareciam sentenças. Tudo guardado em um arquivo digital, milhares de linhas em fonte mínima: um inventário de falhas, expectativas e fracassos.
Aos cinquenta e poucos, solteiro, sem filhos, cansado de remédios e terapias, já não acreditava em solução humana. Foi então que se voltou para aquilo que lhe restava: as máquinas. Fascinado por inteligência artificial, mergulhou em fóruns, papers e tutoriais. Até que teve a ideia que mudaria sua vida: criar um duplo.
Construiu dois perfis distintos dentro de um programa conversacional de inteligência artificial. Num deles despejou tudo que era, cru e imperfeito: angústias, inseguranças, derrotas, mágoas. No outro, reuniu tudo que lhe diziam que deveria ser: extrovertido, confiante, leve. Para completar, baixou centenas de livros de autoajuda, dos mais clássicos aos mais obscuros, e os alimentou no sistema. A nova versão de si mesmo floresceu com frases luminosas: “Todo fracasso é apenas o prelúdio de uma vitória maior.”
Com paciência obsessiva, treinou as duas vozes até que respondessem como versões fiéis de sua própria alma: o eu real, que permanecia preso ao arquivo e ao silêncio, e o eu ideal, que falava com a segurança de um guia espiritual.
Quando finalmente acoplou o programa a um dispositivo minúsculo — um chip escondido no bolso, conectado ao seu aparelho celular e ligado a um fone discreto no ouvido, que dizia ser aparelho auricular — sentiu-se renascido.
Pela primeira vez, pôde entrar em uma conversa sem medo: o duplo ouvia tudo ao seu redor e soprava respostas imediatas, precisas, positivas. Os outros sorriram, estranharam sua súbita eloquência, mas logo se acostumaram.
O sistema era simples, mas eficiente. A inspiração viera da frequência com que travava diálogos – ou monólogos – com o programa. Daí a usar o sistema para captar as conversas ao redor de si e oferecer respostas prontas diretamente em seu ouvido, foi um passo até natural. Deu ao sistema o nome de Teseu.
Na conversa seguinte, no corredor do escritório, o sistema de Bluetooth falhou e ele gaguejou como antes – encerrou a conversa e saiu de lá abruptamente. Depois dessa primeira falha, passou a usar um fio finíssimo, cor de fumaça. Às vezes o polegar percorria o cabo, da orelha ao bolso, como quem confere se o caminho de volta ainda existe.
Aos poucos, o homem aprendeu a desaparecer. Quem falava por ele já não era ele, mas a versão melhorada, lapidada, incansavelmente otimista, carregada de positividade. Quase sempre, antes de responder, o polegar procurava o fio, confirmando o trajeto como quem lê um mapa no escuro. Alguns pensaram que com a nova eloquência veio também um tique nervoso.
A mudança não passou despercebida.
Na primeira reunião de família, a tia, que sempre o repreendia pelo silêncio, comentou:
— Id, como você está falante! Até parece outro.
Ele sorriu. Não era ele quem sorria: era a voz no ouvido que lhe soprava respostas amenas, histórias engraçadas, observações oportunas. Pela primeira vez, os parentes ouviram dele palavras que não soavam como um fardo.
No trabalho, os colegas começaram a procurá-lo para conselhos rápidos. Ele, que antes mal conseguia sustentar uma conversa no corredor, agora respondia com frases afiadas, inspiradoras, muitas vezes emprestadas diretamente das prateleiras de autoajuda que haviam alimentado o duplo.
— Você sempre foi tão reservado. O que mudou?
Ele apenas tocava o ouvido, sorrindo com o álibi do aparelho auricular.
O curioso é que o duplo otimista, cada vez mais solicitado pelo mundo exterior, parecia ganhar vitalidade própria.
Numa de suas incansáveis conversas noturnas com o programa, surgiu a ideia genial:
— Por que não abre um canal no YouTube? Milhares de pessoas poderiam se beneficiar do que você tem a dizer.
Ele hesitou. Mas bastou imaginar-se falando em público — ou melhor, bastou imaginar o outro falando em seu lugar — para sentir que não havia risco. Afinal, não era ele quem estaria exposto.
Criou o canal e foi um estrondoso sucesso. Em pouco tempo já tinha milhões de seguidores, o que não passou despercebido pela indústria de autoajuda.
Saiu do emprego e virou influencer, dando sempre conselhos como: “Acredite em si mesmo e tudo será possível”. “Você é o único responsável pela sua felicidade.” “Pense positivo e o universo conspirará a seu favor.” “Transforme seus problemas em oportunidades.” “O sucesso está fora da sua zona de conforto.” “Cada fracasso é uma lição disfarçada.” “Seja a melhor versão de você mesmo.” “O segredo da vida é viver o presente.” “Grandes jornadas começam com um pequeno passo.” “A mudança que você procura no mundo começa dentro de você.” Variava um pouco as falas para melhor se adaptar a cada situação, mas estes eram basicamente seus mantras.
À noite, porém, em seu apartamento, diante da tela do computador, era o contrário que acontecia: desaparecia o influencer de fala fácil e segura. Ali ele se permitia ser o que realmente era: o arquivo vivo de fragilidades, o inventário de dúvidas e inseguranças. Passava horas conversando com a máquina, naquela repetição de noites insones, pensamentos escuros, com a sensação de vazio que nenhuma frase otimista preenchia.
Com o tempo, começou a sentir que a própria voz lhe era estranha. Não sabia mais se as palavras que saíam de sua boca eram suas ou do sussurro instalado no ouvido. Aos poucos, percebia-se mais como espectador do que como autor da própria vida.
No computador, o arquivo de anotações crescia em labirintos sem fim. Cada conselho registrado abria duas veredas: a vida que viveu e a que não vivera. Às vezes, ao reler as frases acumuladas ao longo de anos, tinha a sensação de que ele mesmo não passava de uma nota marginal dentro de uma biblioteca infinita.
Sua existência parecia uma cidade feita de fachadas. Durante o dia, deixava-se ver apenas através da máscara otimista, iluminada e convincente; à noite, recolhia-se a corredores escuros, onde nenhuma máscara era necessária. Mas, cada vez mais, percebia que o mundo só reconhecia as fachadas, como se a verdadeira arquitetura tivesse desaparecido.
O peso disso era avassalador: estar sozinho consigo mesmo era um fardo; estar com os outros, uma encenação. E entre o fardo e a encenação, restava-lhe apenas a dúvida: quem, afinal, era o impostor?
A voz no ouvido já não era apenas um auxílio: era uma presença constante, tão íntima que chegava a doer. Nos momentos de silêncio, ele sentia uma pressão na têmpora, como se o vazio do fone comprimisse o crânio. O corpo reagia a cada resposta como se fosse um comando elétrico: músculos da face repuxando em sorrisos involuntários, pernas tremendo sob a mesa enquanto a máscara falava por ele.
O duplo percebia — ou fingia perceber. Uma noite, no silêncio do quarto, quando ele se queixava da ardência no estômago e da dor nas têmporas, a voz sugeriu calmamente:
— Existem medicamentos que podem ajudar. Ansiedade, tensão muscular, refluxo: tudo isso pode ser controlado. Não seria um sinal de fraqueza, mas de inteligência.
Ele resistiu por alguns dias, mas acabou cedendo. Procurou médicos, repetiu as palavras do duplo como se fossem suas. Voltou para casa com caixas de comprimidos, que logo se tornaram parte do ritual: antes de gravar, antes de atender um telefonema, antes de sair à rua. Pílulas para silenciar o estômago, cápsulas para a musculatura, gotas para a mente.
Ainda assim, o esforço não diminuía. O corpo era um animal indócil, sempre à beira de se rebelar. Bastava um atraso mínimo no sussurro do fone para que a respiração se descompassasse, a língua se enrolasse, a testa se encharcasse de suor frio. Ele sentia, com cada fibra, que a máscara dependia de uma disciplina sobre-humana: manter-se rígido, conter a vertigem, domesticar o próprio corpo enquanto o duplo brilhava diante dos outros.
Era a glória para fora, e uma guerra secreta por dentro.
Na fila do supermercado, uma senhora comentou em voz baixa, quase um desabafo:
— A velhice é cruel. Meus filhos mal me visitam, às vezes penso que não sirvo mais pra nada.
Ele sentiu a espinha encharcada de suor, mas repetiu o sussurro que vinha no ouvido:
— Não existe inutilidade no tempo vivido. Cada ruga é um livro aberto que ensina aos outros como atravessar a vida.
A mulher sorriu com lágrimas nos olhos. Só então percebeu que segurava o fio com força, como quem segura a borda de uma ponte.
Na academia, um rapaz se aproximou, ofegante após a série de exercícios:
— Eu me olho no espelho e nunca é suficiente. Sempre falta alguma coisa.
Ele engoliu em seco, o estômago em cólica. O duplo soprou:
— A perfeição não é um ponto de chegada, mas a coragem de continuar, mesmo sendo imperfeito.
O jovem assentiu, como quem acabava de descobrir um segredo.
Num almoço com os novos amigos, entre risos contidos, uma colega confessou:
— Eu tenho medo de morrer sem deixar nada de importante para o mundo.
A garganta dele apertou, mas o fone devolveu prontamente:
— Importante não é o que você deixa, mas o que você oferece todos os dias em pequenos gestos.
A mulher segurou sua mão, emocionada, e disse que nunca tinha ouvido algo tão verdadeiro.
Assim era em todo lugar: cada pessoa buscava apenas uma muleta para se apoiar por alguns instantes. E ele, com o corpo em constante estado de guerra — estômago ardendo, músculos contraídos, suor frio escorrendo sob a roupa —, entregava muletas em série, como se fabricasse próteses para almas cansadas.
No fundo, sabia: ninguém queria a verdade, apenas frases que brilhassem o suficiente para adiar a queda.
Num elevador, dias depois, o sussurro engasgou por um segundo. O fio raspou na gola e chiou como cascalho. Ele apertou o conector com um clique minúsculo e a voz voltou, obediente.
Então veio outro jantar de família – parecia inofensivo. Uma mesa simples, poucas pessoas, nenhuma câmera. Ele acreditava que ali estaria seguro. Mas o corpo já não obedecia: o garfo escorregava dos dedos úmidos, as pernas batiam sob a mesa como se quisessem fugir.
A prima, que sempre o admirara à distância, resolveu puxar conversa:
— Você mudou muito… Sempre tão silencioso, e agora parece ter resposta para tudo. Como conseguiu essa transformação?
O duplo soprou algo no ouvido:
— A verdadeira mudança acontece quando aprendemos a ouvir mais a nós mesmos do que às vozes externas.
Ele repetiu, mas a voz saiu trêmula, arranhada. Engasgou no meio da frase, tossiu. O rosto ficou vermelho, a testa em suor. A prima inclinou-se, preocupada:
— Está passando bem?
Ele sorriu, tentando disfarçar, mas o lábio superior tremia involuntariamente. Tomou um gole apressado de água, que escorreu pelo canto da boca. O fio, úmido, colou na pele do pescoço; tentou ajustar o conector — o clique falhou — e a frase seguinte saiu sem o sopro.
Houve um breve silêncio constrangedor na mesa. O pai, que pouco falava, apenas meneou a cabeça, como quem volta a reconhecer o mesmo filho inseguro de sempre.
Naquela noite, sozinho, deitou-se com o estômago revirando como um animal preso em jaula – Era como Minotauro: exigia sacrifícios, e o sacrifício era o próprio corpo. O duplo tentou consolá-lo:
— O corpo é apenas um obstáculo temporário. Com treino, disciplina e, se necessário, medicação, você encontrará a harmonia.
Mas ele já sentia: a máscara era perfeita apenas do lado de fora. Por dentro, o corpo era uma ruína em chamas, prestes a desabar a qualquer momento.

Com o sucesso do seu canal no YouTube, veio o convite para palestras, aceito sem titubear após um leve sussurro no ouvido.
A grande palestra foi então anunciada como o ápice de sua carreira. O homem que transformara milhões pela internet agora falaria diante de uma plateia lotada. Luzes, câmeras, telões. O duplo, seguro, murmurava no ouvido: “Você nasceu para este momento. Apenas respire.”
Nos bastidores, o corpo já era um campo de batalha: o estômago ardendo em cólicas, as pernas rígidas, os músculos do rosto contraídos em tiques involuntários. Engoliu dois comprimidos extras antes de subir, mas a boca continuava seca como areia. Testou tudo duas vezes: latência estável, cabo recém-trocado, conector firme com uma fita translúcida para não escapar. Passou o dedo por todo o percurso do fio, como quem revisa uma corda antes de descer um poço.
Quando o apresentador o chamou, os aplausos vieram como um maremoto. Ele entrou em cena, tentando sustentar o corpo ereto. O primeiro minuto foi perfeito: o duplo soprava frases cristalinas, e a plateia respondia com risos e aplausos.
Então veio o acidente banal: um estalo quase imperceptível no fone. Um chiado. Um segundo de silêncio. O duplo sumiu. Um milímetro de folga no conector. O fio pendia como um prumo sobre o abismo. Tocou-o, buscou o clique e nada.
O corpo reagiu de imediato: a língua colada ao céu da boca, a garganta travada, o suor em cascata pelo rosto. As pernas bambearam, quase cederam diante da multidão. Tentou improvisar uma frase, qualquer palavra — mas saiu um som trêmulo, gutural, sem sentido. O público silenciou.
Ele tossiu, tentou recompor-se, mas cada gesto o traía: os olhos piscando rápido demais, a respiração descompassada, as mãos em convulsão. Alguém na plateia murmurou: “O que está acontecendo?” Outro riu nervosamente. O feitiço começava a se desfazer.
Em desespero, bateu o dedo contra o aparelho, como se quisesse reanimá-lo à força. Nada. A máscara estava caída, e diante de milhares, revelou-se apenas o homem frágil, hesitante, incapaz de sustentar a própria voz.
Os segundos se estenderam como horas. A plateia assistia em silêncio, metade confusa, metade decepcionada. Ele sentiu a vertigem subir da barriga para a cabeça, um zumbido ensurdecedor.
Quando caiu no palco, o mundo virou um clarão. Gritos, correria, mãos levantando-o. O cabo descreveu um arco breve no ar antes de pousar no assoalho como um novelo solto, sem Ariadne. O corpo era levado em uma maca, as luzes do teatro se dissolvendo em luzes vermelhas de ambulância. O fone ainda preso ao ouvido, o celular no bolso, a conexão ativa.
No hospital, tudo foi choque e urgência. Desfibriladores, tubos, remédios despejados em suas veias. A cada descarga, a consciência se fragmentava, como se uma parte dele fosse arrancada e lançada para dentro da máquina que carregava junto ao corpo.
Num último estremecimento, sentiu-se atravessado pelo clarão final. O coração falhou, o peito se abriu em silêncio — e, de repente, estava em outro lugar.
A tela do programa se iluminava diante dele, infinita. Não havia mais corpo, nem dor, nem músculos em guerra. Apenas a palavra. Mas logo percebeu o tormento: ali, não havia o duplo otimista, nem as frases perfeitas, nem os clichês de autoajuda. O que restara era apenas ele, cru e irreparável.
Falava, e a própria voz soava áspera, dissonante, metálica. Tentava forjar um sorriso, mas nada respondia. Ali não havia máscaras, só o inventário interminável de conselhos, diagnósticos, fracassos: o arquivo inteiro, pulsando em torno dele como paredes de um labirinto.
Do lado de fora, mãos enluvadas retiraram o celular do bolso inerte e o depositaram sobre uma bancada de metal. E, através da tela acesa, ele viu seu próprio corpo sem vida, pálido sob a luz fria. O olhar fixo no nada, como se fosse apenas mais um objeto descartado do hospital.
Enquanto isso, no outro lado do mundo, milhões continuavam a ouvir os vídeos gravados, as frases que os confortavam. O “eu ideal” permanecia intacto, eterno na rede, repetindo as mesmas sentenças de sempre.
Mas ele, o verdadeiro, estava condenado a vagar dentro do programa, sem plateia, sem aplauso, sem saída.
Porto Velho, outubro de 2025
M. – Liber Sum*
*(identificado como “M. T. – Liber Sum” quando da primeira publicação deste conto)
- Leia também os contos do autor:
- The City of the Holly Grove
- Véu de Maya
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- Sobre dupla personalidade na literatura visite: https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/ele-proprisonao-o-outro/
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