Teoria da Imposição pelo Fato

A Teoria da Imposição pelo Fato e o Realismo Jurídico: objetividade social e subjetividade judicial no Poder Judiciário.

  1. Introdução

O discurso oficial da justiça apresenta-se como aplicação imparcial da lei a fatos concretos. Todavia, a prática revela fraturas entre a norma e sua efetividade. Casos formalmente idênticos podem receber respostas distintas a depender do contexto social em que se inserem.

Exemplo: em comarca assolada por reiterados roubos armados, um roubo cometido com simulacro de arma tende a ser percebido como menos grave; em comarca pacata, o mesmo delito adquire dimensão simbólica maior e pode ser punido com rigor.

Surge daí a Teoria da Imposição pelo Fato: a realidade objetiva e reiterada impõe-se, silenciosamente, sobre a subjetividade dos julgadores. Mais do que a lei ou os princípios, é o ambiente que recalibra a régua de gravidade utilizada no processo decisório.

  1. A objetividade fática como força social

Durkheim define os fatos sociais como exteriores, coercitivos e independentes da vontade individual¹. Analogamente, na justiça criminal, a repetição ou raridade de certos delitos atua como força invisível, moldando a percepção de juízes e promotores.

Essa objetividade se impõe não como escolha consciente, mas como campo gravitacional que curva a trajetória da decisão. A lei permanece a mesma; o que muda é a lente pela qual o julgador a enxerga, reconfigurada pelo peso do contexto.

  1. Cultura da vara e costume da corte

Estudos de sociologia judicial nos Estados Unidos identificaram a noção de courtroom workgroup²: padrões informais de decisão compartilhados por juiz, promotor e defesa, resultando em going rates de penas. Tais práticas não estão escritas na lei, mas têm força normativa.

No Brasil, embora pouco estudado, percebe-se empiricamente algo análogo: a cultura da vara. Cada unidade jurisdicional desenvolve rotinas, expectativas e padrões próprios de resposta penal. Trata-se de uma jurisprudência invisível, consolidada na prática cotidiana.

A imposição pelo fato atua, portanto, em dois níveis:

  • macro: ambiente social (taxa de criminalidade, choques midiáticos);
  • micro: cultura interna da vara (padrões decisórios tácitos).

4. Filosofia da decisão: diálogos possíveis

A Teoria da Imposição pelo Fato pode ser situada no cruzamento de várias tradições:

  • Realismo jurídico: para Holmes e Frank³, o direito não é a norma escrita, mas aquilo que os tribunais fazem. O ambiente, portanto, já é direito em ato.
  • Bourdieu: o campo jurídico opera segundo habitus que naturalizam práticas locais, formando um nomos invisível⁴.
  • Psicologia cognitiva: Kahneman e Tversky⁵ mostram como heurísticas (disponibilidade, ancoragem, adaptação-nível) moldam decisões inconscientes. O juiz, ao lidar com crimes “comuns” ou “raros”, é vítima dessas mesmas armadilhas.
  • Fuller: a moralidade interna do direito exige coerência e universalidade⁶; mas a imposição pelo fato, ao relativizar casos idênticos, revela a tensão entre legalidade e contexto.

5. Consequências para a justiça.

A teoria ilumina fenômenos muitas vezes invisíveis:

  • Erosão da isonomia: casos iguais recebem tratamento desigual em função do contexto.
  • Jurisprudência subterrânea: rotinas locais moldam práticas que não chegam aos tribunais superiores.
  • Contaminação inconsciente: juízes acreditam agir de modo imparcial, mas reproduzem padrões impostos pelo ambiente.

6. Conclusão

A Teoria da Imposição pelo Fato não propõe negar a lei, mas desvelar como a objetividade social infiltra-se na subjetividade judicial. O direito não se aplica em um vácuo: é atravessado pelo contexto, pelos costumes da corte e pela cultura da vara.

Reconhecer esse fenômeno é o primeiro passo para compreendermos a distância entre a promessa da isonomia e a realidade da prática judiciária. Trata-se de uma fissura que não pode ser ignorada pela dogmática jurídica, sob pena de perpetuar desigualdades silenciosas.

Porto Velho, abril de 2024

M. – Liber Sum


Notas

  1. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
  2. EISENSTEIN, James; FLEMMING, Roy; NARDULLI, Peter. The Contours of Justice. Boston: Little, Brown, 1988.
  3. FRANK, Jerome. Law and the Modern Mind. New York: Anchor Books, 1963.
  4. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
  5. KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
  6. FULLER, Lon. The Morality of Law. New Haven: Yale University Press, 1969.

Bibliografia complementar

  • JOHNSON, Brian. Contextual disparities in sentencing decisions. Criminology, v. 44, n. 4, 2006.
  • SUDNOW, David. Normal Crimes: Sociological Features of the Penal Code in a Public Defender Office. Social Problems, v. 12, n. 3, 1965.
  • STEFFENSMEIER, Darrell; ULMER, Jeffery; KRAMER, John. The Interaction of Race, Gender, and Age in Criminal Sentencing. Criminology, v. 36, n. 4, 1998.”

Leia também o conto do autor: A moeda

A respeito de Realismo Jurídico visite: https://www.conjur.com.br/2024-mar-09/precisamos-falar-sobre-realismo-juridico/

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