“Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more.”
— William Shakespeare, Macbeth (V, v)
A decadência estética vista por um polidor de espelhos em uma cidade onde se entregam dois prêmios cinematográficos, mas que não existe em mapa algum.
Numa cidade que não figura em mapa algum — cujas coordenadas celestiais são α = 1h 13m, δ = +14° 17′ 01″ —, cercada de bosques de azevinhos que ninguém soube plantar, existe a Academia dos Espelhos. Não é um museu, tampouco um teatro; é uma casa de muitas salas onde se vê menos quanto mais se olha. Ali se instituiu, há anos, um prêmio anual de prestígio variável e rumor certo: o Oráculo do Espanto, mundialmente conhecido como Tio Herrick, concedido a personalidades do mundo artístico. É representado por uma estatueta de cristal.
Além dele, surgiu um prêmio paralelo, de nome tão enigmático quanto solene: a Cana ao Vento. O prêmio é uma cana de ouro agitada pelo vento, sobre um pedestal de cristal. Ninguém se perguntava se o vento soprava da arte ou da moda; e ninguém parecia notar que o ouro, nesse caso, era folha batida, feito para dobrar-se e brilhar apenas enquanto o vento soprava.
Naquela casa de reflexos, compreendi cedo que a decadência estética não é um desabamento súbito, mas uma delicadeza que vai sendo trocada por ruído.

Trabalhei certo tempo como zelador de superfícies naquela Academia. Aprendi a polir espelhos. O primeiro segredo é paradoxal: o polimento em excesso dá verdade demais; convém deixá-la falhar um pouco, para que a imagem se torne lisonjeira e não denuncie a decadência estética. O segundo segredo é moral: nada reflete tanto quanto um público com pressa de se ver virtuoso.
Nessa cidade vivia uma família antiga, cujo brasão era uma escala musical e um côvado real de Karnak: Nobile, o pai, a quem os íntimos chamavam de Bom Gosto; Kalía, a mãe, conhecida como Estética; e o filho, Lucio Speculo.
Lúcio Speculo crescera gentil, quase afável. Era pródigo no bar, polido com os técnicos que carregavam cabos, e tinha um talento raro de fazer sentir à plebe o conforto da proximidade com os salões. Quando estava sozinho, porém, falava de si como de um escolhido triste: dizia que nascera tarde para as epopeias e cedo para as ruínas. Isso, no início, soava só como literatura.
Kalía era bela, mas de uma beleza exigente. Conhecia as linhas humanas, as proporções dos templos e os segredos da luz. Falava baixo, como quem sabe que o mundo se sustenta por delicadezas. Nobile, já cansado, trazia nos bolsos os provérbios que sustentam as pontes invisíveis da convivência: “Não grites no salão”, “Não chutes escadas”, “Há fronteiras que nos mantêm humanos”. Não eram ordens; eram saberes que um século de ressentimento aprendeu a confundir com opressão.
Certo dia, a Academia anunciou um tema para o Oráculo do Espanto: “Transgressões que nos libertam de cadeias inventadas.” O edital aplaudia, com sobriedade fingida, quem escarnecesse dos grilhões dos tempos — desde que o fizesse com aparência de coragem. A transgressão, ali, tinha protocolo.
Foi então que Lúcio Speculo apresentou seu projeto: um filme de câmera inquieta, luz precária e fala casual, em que a Arte — com maiúscula por hábito, minusculamente tratada — surgia de mãos dadas com a Prostituição da Arte. Não havia concha, nem arpões; havia exposição. Sexo como pontuação, drogas como acento agudo. O Belo sendo ultrajado sem nenhum motivo aparente além do ultraje – um ensaio involuntário sobre a decadência estética.
Nos ensaios de mesa, ouvi um dos conselheiros repetir, como um refrão, a doutrina do Convencionalismo dos Transgressores: escandalizar é fácil, mas dá prestígio. “A originalidade, quando incessante, denuncia talento raso”, murmurou um cronista de casaca escura, sem que ninguém o escutasse. Outro conselheiro, com um livro recente sob o braço, dizia que opinião própria basta — que um erro bem sentido é superior a uma forma bem feita. Os assistentes tomavam nota com a gravidade de quem decide o clima.
No roteiro de Lúcio, havia uma festa nupcial: Kakía leva sua filha Calíope ao altar, onde a espera o noivo Momus. Como padrinhos, comparecem Comus e Priapo. As alianças foram feitas da liga mais corrente daquela república: uma mistura de ressentimento, sentimentalismo e técnica escassa. O padre — um crítico sem paróquia — invocou Shakespeare, mas por recortes: Macbeth para a ambição (sem culpa), Medida por Medida para o sexo (sem consequência). Era um Shakespeare amansado, de antologia; faltava-lhe o abismo que dá sentido às palavras.
Kalía assistiu à cerimônia em pé, com os braços cruzados. O salão a olhou como quem observa uma tia antiga a atravancar a pista. Nobile tentou falar dos limites que não oprimem, mas sustentam; anedotas prudentes não têm audiência quando o salão exige catarse. Speculo, ao perceber a chegada dos pais, transfigurou-se. O rapaz gentil cedeu lugar ao herdeiro nervoso, ansioso por um gesto que provasse sua emancipação. O que antes parecia leveza revelou-se pavor da medida.
O filme estreou. Nada de novidade exceto a novidade de nada oferecer; nada de profundidade salvo a certeza de que a superfície havia sido promovida a doutrina. A sala, de início, riu com aquele riso leve que protege da vergonha alheia. Depois, com o protocolo aprendido, começou a aplaudir nos pontos certos: os palavrões (por sua suposta coragem), os tabus quebrados (por seus supostos grilhões), a família pintada como obstáculo (por sua suposta tirania). A cada aplauso, o espelho do fundo alargava a imagem do público, que pouco a pouco ocupava toda a tela. Era a pedagogia perfeita da decadência estética: indignações coreografadas, coragem de manual e o conforto de jamais arriscar uma forma.
O júri reuniu-se. Sobre a mesa, uma moeda com a efígie de Gresham — não o economista, mas o santo laico dos comitês culturais: “o ruim expulsa o bom”, rezava, em latim popular. A votação consistia em lançar a moeda no prato das ofensas sentidas. O filme de Lúcio não tinha cenas memoráveis, mas colecionava sintomas; e sintomas valem lauréis onde causas dão trabalho.
Cada conselheiro tinha direito a 12 votos. Um dos conselheiros não negava a ninguém que seu sistema de votação era simples e direto: primeiro votava nos amigos, depois pedia para seus filhos – duas belas crianças – escolherem os outros candidatos. Assim se apresentava para votar com a decisão já bem tomada. Além desse modo singular de votação, era do tipo que coleciona manias, tinha o hábito de traduzir nomes em números, como se as letras do latim antigo escondessem uma verdade. Guardava essas cifras em cadernos que ninguém lia.
Alguém, talvez por zelo, recordou que a tradição reconhece méritos ao trabalho minucioso: foco, enquadramento, iluminação, respirações. Foi quando um conselheiro explicou, com a paciência dos catecismos, que havia duas ordens de grandeza: a da Técnica, que qualquer um pode aprender; e a da Autenticidade, que nasce pronta. Aquilo que antes se chamava imperícia foi rebatizado de sinceridade. E sinceridade, todos concordaram, é argumento que não admite réplica.
O Oráculo do Espanto foi, enfim, entregue a Lúcio Speculo — não tanto pelo filme que fez, mas pelo parentesco simbólico que proclamava: um filho libertando-se dos pais opressivos. A Cana ao Vento também lhe foi concedida, como testemunha dourada de sua leveza e da abordagem ousada sobre desigualdade social. O presidente citou, de memória infiel, o poeta que nos advertiu para pensarmos bem; mas trocou o verbo e a finalidade: “Esforcemo-nos, portanto, para sentir intensamente. Eis a essência da moral.” O público, nesse ponto, levantou-se; não pelo poeta, mas pelo espelho. A Academia não distinguia mais entre obra e plateia.
Quando saí, deparei Kalía e Nobile no átrio. Ela, com o olhar ofendido das formas desconsideradas; ele, com a tristeza discreta de quem sabe que proverbiais pontes, uma vez queimadas, exigem rios inteiros para serem reconstruídas. “Ainda há linhas”, disse ela, como quem enuncia um axioma. “E linhas preservam as pessoas.” Ninguém ouviu: ao lado, um repórter recolhia depoimentos sobre a “coragem redentora” do filme.
Nessa noite, em meu depósito de panos e pós, medi um espelho abandonado. Descobri que alguém escrevera, no verso, uma glosa: “A vulgaridade é democrática; a delicadeza, aristocrática. A democracia, quando se ofende da delicadeza, se condena à grosseria perpétua.” Não sei se era citação; soava antiga. Acima, uma nota: “Não confundir compaixão com exibicionismo da dor.” Pensei em certos livros recentes e desconfiei que as sentenças tinham autores reconhecíveis, mas na Academia é prudente não nomear.
Speculo passou, dias depois, no corredor. Cumprimentou-me com um aceno breve, como quem acena a um espelho que já não precisa. Parecia aliviado. Naquela semana, os convites o disputaram. Aos repórteres, repetiu a liturgia: falou da necessidade de remover restrições e de ousadia moral, palavras que a assembleia ama por dispensarem conteúdo. Um colunista, devoto das modas, declarou que Speculo era um libertador. Libertador do quê, ninguém soube dizer, o que é sempre o melhor: o vago outorga grandezas.
Houve, como em todo culto, dissidentes discretos. Um velho professor — desses que ainda leem o teatro como quem trabalha — observou que, em Shakespeare, o mal não vem com desculpa; é mal e basta, pede resistência e punição, não prêmios e discursos. Encolheram os ombros. A Academia não se ofende com o mal; ofende-se com o juízo.
O que ocorreu então foi lento e visível para poucos. Kalía deixou a cidade pela manhã, com uma mala leve. Acompanhei, de longe, a silhueta dela ao atravessar a praça. Não havia estatísticas que registrassem, mas a luz mudou. As sombras, antes esculturais, espalharam-se. Nobile seguiu no dia seguinte, sem mala, como quem sabe que nada lhe pertence. Sua partida não comoveu; a comoção estava toda reservada para o próximo anúncio de ofensa.
Sem os pais, Speculo ganhou confiança. A transgressão empobrece quando ninguém a contraria; aquilo que antes tinha o prazer furtivo do desafio tornou-se mero hábito. Os críticos — sempre generosos quando o risco passa — chamaram o novo vazio de estilo. Os jovens, a quem negaram uma língua enquanto lhes deram um megafone, tornaram-se severos guardiões da leveza obrigatória. Os espelhos, polidos por mãos como as minhas, começaram a não refletir nada senão a plateia.
Foi então que me demitiram. “Suas superfícies estão transparentes demais”, disseram. “Um bom espelho deve velar; a verdade ofende.” Antes de ir, pedi ao porteiro que me deixasse girar, por uma última vez, o espelho esférico que servia como uma espécie de placa da entrada. Na face exposta, lia-se o lema da casa, o que o presidente citara ao entregar o prêmio: “Esforcemo-nos, portanto, para sentir intensamente.” Girei a esfera. No ponto antípoda, num latim doméstico, estava a frase original: “Esforcemo-nos, portanto, para pensar bem. Eis o princípio da moral.” Enquanto eu a lia, o porteiro, obediente, girou a esfera para o lado devido.
Parti. Não voltei a ver Kalía nem Nobile. Às vezes penso neles nas manhãs em que a luz cai reta e humilde sobre as coisas, e nelas aparece, outra vez, a possibilidade da forma. Speculo segue sua carreira de prêmios: a cada ano, um júri novo decide que ele se superou em audácia, e o público, devidamente instruído, se emociona. Não é mais necessário assistir; basta a notícia.
À noite, em casa, conservo um único espelho sem moldura. Não o pulo: deixo que a poeira lhe dê, de tempos em tempos, o índice de nossa honestidade. Quando me olho, sou tentado a aplaudir e me abstenho. Alguns tabus, descobri tarde, nos guardam de nós mesmos. E quando me pergunto se Speculo foi um filme, um homem, um símbolo ou um truque de nomes, lembro o que aprendi naquela casa: às coisas graves, hoje, damos palavras baratas; e às baratas, lauréis graves.
Se um dia Kalía e Nobile voltarem, talvez tragam consigo uma pequena paciência e uma pequena severidade; nada heroico, nada teatral. Talvez recoloquem mesas, voltem a medir as linhas, devolvam à cortesia o seu antigo esplendor de escudo. Ou talvez não; talvez seja tarde e o tempo prefira espetáculos. Em qualquer caso, o mal floresce quando derrubam-se as barreiras; a arte empobrece quando confunde ressentimento com profundidade; e nós, que tanto amamos espelhos, um dia teremos de olhar pela janela.
Entre o aplauso automático e a memória das linhas, resta-nos escolher se aceitamos a decadência estética como destino ou se voltamos a medir as coisas.
Enquanto isso, o prêmio segue, aplaudido sem que se saiba bem por quê. A cidade, que não figura em mapa algum, aprende a confundir grito com música, choque com coragem, sinceridade com forma. A moeda de Gresham — estampada na parede da Academia — continua a cair sempre do mesmo lado. E Speculo, que um dia foi rapaz afável, cumprimenta de passagem seus técnicos, que aprenderam a sorrir sem dentes.
Contam que, certa noite, ao final de mais uma cerimônia, um velho — ninguém sabe se crítico, poeta ou apenas um homem ainda capaz de rubor — arriscou uma pergunta inconveniente: “E se a ousadia maior fosse, de novo, a medida?” Não houve resposta. Um aplauso automático acudiu ao vazio, e o espelho da sala, por delicadeza, apagou a pergunta do vidro. Depois disso, encerrou-se a sessão, que, como todas as sessões, fora pensada para não terminar nunca.
Uma última dúvida me assalta: impunemente retiramos um tijolo – mesmo que seja apenas um – de uma fundação?
Porto Velho, 02 março de 2025
M. – Liber Sum
Dicas para leitores atentos:
As coordenadas da cidade são um enigma.
- Os prêmios, ecos de outros prêmios.
- Há uma esfera de Pascal escondida entre os espelhos.
- Os nomes dos personagens… dizem mais do que parece.
- E a data do conto talvez não seja apenas uma data.
- Leia também o conto do autor: A moeda
- Sobre a decadência estética visite: https://www.fronteiras.com/assista/exibir/a-civilizacao-do-espetaculo
Decadência estética e vulgaridade nas artes: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41888991
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